quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Quando o Mulambo parou de beber


Para estimular a criação de gado leiteiro em região próxima de grande centro consumidor, no caso o Rio de Fevereiro, o Banco da Belíndia, em certa ocasião, implantou programa de empréstimo financeiro aos produtores rurais para aquisição, ou ampliação do plantel, de gado leiteiro.

“Dinheiro barato! Prestações baixinhas! Ah! É comigo mesmo!”, disse o Mulambo.

Não deu outra, Mulambo foi lá e apanhou o tal empréstimo, e, claro, não comprou gado nenhum, gastou tudo na farra e boemia.

Um belo dia, Mulambo recebeu uma carta do Banco da Belíndia, para comunicar-lhe a data em que os fiscais do banco iriam vistoriar o gado adquirido com o empréstimo.

Aí o Mulambo entrou em desespero: “Meu Deus o que vou fazer?”. E começou a imaginar formas de se livrar dos fiscais: “Já sei, vou pedir as vacas do meu vizinho emprestadas e dizer para os fiscais que as comprei com o dinheiro do empréstimo. Não, não vai dar certo, meu vizinho não vai concordar, por causa daquele maldito cavalo dele que peguei emprestado e vendi para os ciganos que sempre passam por aqui, e disse pra ele que o cavalo havia morrido na última enchente do ribeirão. Mas acho que ele não engoliu a estória, pois sempre que pode relembra o fato com ar de quem foi enganado, e diz em tom prosaico: - É... Seu Mulambo, já ouvi muita história de enchente aqui na nossa região, que já morreu muita galinha, estragou muita plantação, que já morreram até alguns porcos, mas cavalo morrer em enchente eu nunca tinha escutado não!”

- “Ah!!!, já sei! Pensou o Mulambo. Vou apanhar empréstimo em outro banco e comprar umas vacas pra mostrar aos fiscais e, logo depois, vendo as vacas pra pagar ao banco”. Aí um amigo do Mulambo, que é bancário, disse pra ele que esse plano não era perfeito, porque os fiscais continuam a fiscalização até que toda a dívida seja saldada, e, além disso, ele não poderia dar o mesmo sítio em outra hipoteca.

-“É..., tá difícil companheiro. Acho que vou pedir ajuda pra um amigo lá do Nordeste, da época em que eu fui caminhoneiro, pra indagar por lá como foi que aquele pessoal do empréstimo da mandioca resolveu com os fiscais.” Disse Mulambo para o amigo bancário. Novamente o amigo desaconselhou-o. Desta vez, com o seguinte argumento: “Mulambo, você é barrigudinho, no máximo lambari, esse pessoal do empréstimo da mandioca é peixe graúdo, a solução deles certamente não vai estar ao se alcance, e, além do mais, não vai colar de novo. Né?”

Sem mostrar saída para a situação em que se metera, Mulambo deixou de ser aquela pessoa alegre que sempre fora e passou a ficar muito triste e contemplativo da paisagem do seu sítio, como se estivesse se despedindo dela. Ficava durante o dia, a contemplar os morros com seus pastos desocupados, as matas, os açudes, o ribeirão, o curral sem vacas..., e passava as noites pisando nos besouros e paquinhas, atraídos pela luz da varando do botequim que ele havia aberto no sítio que caíam no chão, e dando vassouradas nas aranhas caranguejeiras, atraídas pelos besouros e paquinhas pisoteados pelo Mulambo. Pela manhã ele recolhia os insetos em sacas de juta e levava para as galinhas. Chegou a juntar em noites quentes de verão, com pouco vento, cerca de duas sacas de 60 Kg. Ele dizia que a qualidade dos ovos das galinhas melhorou depois que ele substituiu o milho pelos insetos, ficaram mais afrodisíacos. Até a bandeira do Flamengo que sempre esteve hasteada na sacada do botequim ele recolheu. E o pior foi que ele não se alimentava mais normalmente, só comia ovos e, por incrível que pareça, não estava bebendo mais cerveja. O empregado dele contratado para fechar a porta do botequim, que era pesada - de ferro enrolado e presa ao teto -, começou a procurar outro emprego, pois o próprio Mulambo passou a fechar tal porta. Antes ele não conseguia fechar a porta devido ao grau alcoólico que normalmente àquela hora da noite habitualmente se encontrava.

A família e os amigos do Mulambo começaram a se preocupar com ele, pois Mulambo era o exemplo perfeito daquele ditado que diz que haveria mais paz e alegria no mundo se a humanidade estivesse a uma dose de uísque acima (não sei a origem desse ditado, mas parece que é inglês). O Mulambo quase sempre estava, no mínimo, com dez garrafas de cerveja acima, ou melhor, quase sempre estivera. Os amigos do Mulambo, quando comentavam sobre ele, diziam que todos os dias passaram a ser segunda-feira, porque esse era o único dia da semana em que o Mulambo não bebia, não por falta de vontade, mas por falta de parceiro, pois das poucas coisas na vida que ele não gostava, beber sozinho era uma delas. Aliás, ele não gostava de ver ninguém bebendo sozinho. Se entrasse uma pessoa desconhecido no seu botequim e pedisse uma cerveja para beber sozinha o Mulambo logo mostrava sua solidariedade: puxava conversa, apresentava seu copo e fazia absoluta questão de dividir a conta. “No meu botequim ninguém bebe sozinho”, dizia ele. Havia quem afirmasse que não se tratava de nenhuma solidariedade do Mulambo, que ele simplesmente procedia dessa forma, para ele mesmo não beber sozinho. O Mulambo gostava tanto de cerveja que nunca reclamava da marca que serviam para ele e jamais culpava essa ou aquela marca por uma dor de cabeça de uma ressaca qualquer. “Cerveja é sempre cerveja, temos de dar crédito para estimular o fabricante e fomentar a concorrência e, em conseqüência, melhorar a qualidade. Quem sai ganhando somos nós”, dizia ele.

Mas foi contemplando a paisagem do pasto no maior morro do seu sítio, do botequim que ele havia ali aberto, ponto predileto das reuniões a tardinha dos bebedores semi-profissionais de cerveja das redondezas, que ele teve a idéia mais criativa para resolver o problema da fiscalização do Banco da Belíndia. Aí ele não perdeu tempo, abriu logo uma garrafa de cerveja e mandou o seu retireiro, que nunca retirou leite de nenhuma vaca, chamar os amigos para expor a brilhante idéia. Assim que os amigos chegaram, Mulambo foi logo apontando para o pasto no alto do morro e dizendo: "Olha lá, olha lá, estão vendo aquelas pedras encravadas no pasto que vocês sempre me disseram que não servem pra nada e só desvalorizam minhas terras? Pois é. Serão elas a minha salvação, porque eu já até falei pro retireiro, vou pintá-las de cal e mostrar pra esses fiscais que são as vacas da raça nelore que eu comprei; subir lá pra ver de perto eles não vão porque a subida é muito íngreme e esse pessoal engravatado do banco não é alpinista. Cal, ainda bem, é coisa barata, o retireiro está sempre desocupado mesmo, portanto, se chover, eu mando caiar de novo até que esses fiscais cansem de vir aqui. Hoje quem paga a cerveja sou eu, e, está gelada, porque eu não tenho aberto o "freezer".


Crônica baseada nos causos que o Mulambo (é com u, mesmo) contava nas rodas de cerveja no seu botequim, que hoje em dia tornou-se um lindo restaurante. Os meus saudosos amigos Carlos Alberto Castelo Branco, o Beto, que fez o copy desk, e o Marcelino Alvim Tostes, o Marcelinim, a publicaram no Página Um, em setembro de 1995.

Nenhum comentário: